Porto Alegre / RS (SBPA) – Brasília / DF (SBBR) - 12:18h.

Brasília é a maior representação do movimento moderno brasileiro no século XX. Brasília, síntese das artes como afirmou Mário Pedrosa, foi idealizada por Juscelino Kubitschek, planejada por Lúcio Costa e desenhada por Oscar Niemeyer. Inaugurada em 1960, o guia turístico da cidade informa que ela foi erguida em mil dias. Do sonho deenvolvimentista nacional, que significou a abertura de novas fronteiras internas (ou, melhor, um novo projeto de colonização do interior do país), sua arquitetura monumental e traçado urbano foram tombados pela UNESCO em 1986 como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Nova Babilônia, cidade-projeto nômade ou cidade situacionista, foi “esculpida” por Constant Anton Nieuwenhuys num período de quase vinte anos (1953-56/1974). Inspirada nos assentamentos nômades ciganos, Nova Babilônia representa uma variante do anti-monumento, da antiarte pública e antioficial: a tese de Constant era fundar de um novo modus vivendi urbano que contemplaria saídas de emergência para a vida cotidiana configurando uma cidade onde os mecanismos reguladores não se sobrepusessem à imaginação criativa, mantendo o homem exposto à estímulos e experimentações.

Brasília e Nova Babilônia. Duas concepções distintas de cidade suscitadas praticamente ao mesmo tempo. Não posso deixar de pensar na possível relação (de aparente contraste) entre essas urbes ao caminhar à pé por uma Brasília monumental. Para mover-se em Brasília é necessário cabeça, tronco e rodas, como tão bem definiu um dos artistas da residência (obrigada Dalton, pelo preciso comentário enquanto enfrentávamos o monstruoso congestionamento de uma sexta-feira à tardinha, com chuva, na saída de Brasília com passagem pela – sim, ela existe – a cidade do automóvel, uma das tão grandes cidades-satélite da capital do Brasil). Tenho uma primeira impressão positiva acerca da escala humana ergonômica que me imprime a superquadra sul 105, onde eu estava hospedada, com suas alturas padronizadas dos blocos de 5 andares, cercados por área verde, estacionamento público e pilotis com a premissa de acessibilidade universal. No entanto, não deixo de perceber cercas de todas as formas como tentativa de criação de barreiras espaciais no andar térreo e uma dificuldade imensa para cruzar vias ao sair da superquadra em direção ao eixo monumental, à pé (já e sempre como uma errante caminhante).

Em dois carros com cinco pessoas (conheço apenas 4 delas), partimos de Brasília (com Belchior, a música eu desconheço, no som de fundo). Em Alto Paraíso chegamos 5 horas depois, após as inevitáveis derivas “sofridas” na saída da Brasília no engarrafamento do fim do dia, com o jazz de Sun-Ra ao fundo – ele que é também conhecido pela sua “filosofia cósmica” estamos embalados pela minimialista Lanquidity (1978) - simultâneas às batidas frequentes embaixo do carro, causados pelos quebra-molas altos e sem sinalização. Eu dirigo. E pensei que essa poderia ser a trilha sonora de abertura de uma versão tupiniquim de Twin Peaks já que o suspense seria, sem dúvida, o mesmo ao chegar à Alto Paraíso à noite, na cidade vazia e sob neblina.
dia 01 – de um planeta chamado modernismo rumo à nova babilônia
Qualquer pesquisa sobre a Chapada dos Veadeiros remete à históricas fantásticas. Misticismo, portal para a 5 dimensão, mundos intraterrenos, campo de pouso de naves alienígenas (logo depois verifico, in loco, que algumas placas em Alto Paraíso afirmam consertar discos voadores). Essa é uma das formações geológicas mais antiga do planeta e, dizem, que a gigantesca placa de cristal de quartzo escondida em seu subsolo faz com que a emissão de sua luminosidade pode ser vista do espaço (não estive lá ainda, então não posso afirmar se a afirmação é procedente ou não). A Chapada dos Veadeiros é cortada pelo paralelo 14, o mesmo que passa por Machu Pichu, a cidade perdida dos incas, no Peru. Estaria aí a matriz do misticismo? Nas pesquisas online, lê-se em profusão “Alto Paraíso: campo energético do planeta imune a cataclismos”.

Seria Alto Paraíso um lugar para a configuração de uma Nova Babilônia, um esboço para a proposição de uma outra cultura a partir das vontades de interconexão entre um grupo de artistas, pesquisadores e curadores? O que nos aproxima?
Dia 02 – da desconexão urbana à conexão natureza: um exercício ansioso sobre a criação de um território efêmero para a (con)vivência.
De Alto Paraíso ao Pé-de-Serra, entre atolamentos, 13Km de tensão pós-chuva e paisagem absorta, localiza-se Alto Residency. Nessa enigmática paisagem entre a altitude varíavel de 1.689m a 300m, reside um desafio no dia 02, na chegada ao local: como desconectar-se?

Não há sinal de telefonia móvel, não há internet (chove muito e nessa época do ano as placas solares responsáveis pela transmissão do sinal não funcionam), as casas nas árvores são rústicas, os banheiros são secos, a alimentação é vegetariana. É possível permanecer uma semana aqui em um grupo tão diverso a partir da descoberta de possíveis afinidades? Uma premissa: a disponibilidade para a deriva contínua, com temporalidade definida, para dar vazão à criação.































Que ligação poderia exisitir entre a Nova Babilônia de Constant, cidade nômade, e esse terrain vague de Alto Residency, do aqui e agora? Nessa sociedade sem espetáculo e de essência comunitária, Alto Residency apresenta-se como um lugar onde o contraste entre o existente e o possível pode ser superado. Nesse contexto, ao longo desse circuito de uma semana, a partir do tempo metereológico da região que nos é ofertado nessa época (chuva intermitente que impossibilita longas saídas do nosso ponto zero em função das condições da estrada), subvertemos a intencionalidade primária da proposta de deriva para nos concentrarmos na casa, no seu livre trânsito e nos espaços compartilhados como centro de produção de energia criativa (para tomar os moldes dos setores pensados por Constant, aplicados aqui em sua forma simbólica). O entendimento (e aceitação) das circunstâncias é uma percepção fundamental para colocar-se em deriva.

“Nova Babilônia não é um projeto de urbanismo. Também não é uma obra de arte no sentido tradicional do termo, nem um exemplo de estrutura arquitetônica. Pode-se apreendê-la na forma atual, como uma proposta, uma tentativa de materializar a teoria do urbanismo unitário, para se obter um jogo criativo com um ambiente imaginário, que está aí para substituir o ambiente insuficiente, pouco satisfatório, da vida atual. A cidade moderna está morta, vítima da utilidade. Nova Babilônia é um projeto de cidade onde se pode viver. E se pode criar”. Constant, “Nouvelle Babylone”, texto de 1960 republicado em Ulrich Conrads (org), Programmes et manifestes de l'architecture du XXème siècle. Paris, Éditions de la Villette, 1991.

Eu estou na casa da árvore, praticando birdwatching (e penso: que passividade criativa a minha) e leio Philip Roth. São 18h. É a primeira vez que vejo um tucano sem estar em um espaço confinado, domesticado. Em silêncio vibrei.

































Próximo ao espaço principal compartilhado, há uma trilha que conduz à casa na árvore. Somos guiados pela moradora do local para acessar uma pinguela (eu gosto desse nome desde criança, onde havia pinguela na minha cidade natal. Elas expressam no próprio nome a palavra movimento, balanço. Você também tem essa impressão?). Para acessar a casa na árvore o número máximo de pessoas é 4. Um de cada vez, descalços, para o percurso do deslumbramento. A casa na árvore flutua sob a copa das árvores, um rio corre embaixo (não o vejo, o escuto), um horizonte de montanhas em frente, um paredão na lateral. Silêncio pleno. Talvez para a desconexão, ou melhor, conexão, é preciso estar atento para encontrar as margens, sombras e sobras, ouvir e ver onde se está.
Para a construção da Nova Babilônia, tomam-se os elementos móveis, a casa coletiva, habitações temporárias, espaços em remodelação, abrem-se caminhos – picadas na floresta para não seguirmos o traçado que já está posto – contrói-se um campo nômade para discussões e proposições artísticas. Como estratégica curatorial, oferta-se um espaço aberto, passível de ser escolhido, decidido e manipulado. Estamos aqui, errantes, no sentido mais amplo daquilo que não está definido, fixo, que tem um caráter movediço, que está disponível ao acaso e às circunstâncias dos encontros. Não há instruções para a deriva (para perder-se, para encontrar-se), somos levados pela sensação de vastidão da natureza do entorno.

Deriva

À deriva
perdeu ação

tornou-se radical
um tanto imaculado

Não fosse a proposta movente da residência
à deriva,
pobre!
Restaria a solidão

Mas,
o movimento de todo tormento
fez à deriva
derivanear.

Derinaveou, derivaneou, derivaneou...

E na derivação da língua
No deslocamento do sentido
à deriva
fez seu lar

(Liza)

Da cozinha ouve-se: quais são os exotismos na apresentação da arte da região amazônica? O concretismo é a matriz de toda a arte brasileira contemporânea? A formação em artes visuais pode ser tecnicista? O que isso implica na produção artística pós-universidade? Na mesa do jantar, entre garfadas de um delicioso prato preparado com produtos da feira orgânica de Alto Paraíso onde todos estivemos pela manhã, entre conversas diagonais, poemas declamados, alguma cantoria e outro tanto de alegria, nasce um território efêmero para a criação artística e de laços afetivos.
Dia 03 – ver o céu, ouvir a paisagem: texturas de um lugar.
Eu nunca havia despertado e visto o céu imediatamente sob o meu corpo na horizontal, dentro de uma casa, ainda deitada na cama. Os antigos olhavam para o céu e passavam a noite observando o movimento, a intensidade e a grandeza do céu. No céu se observa a fluidez do espaço, os corpos celestes imersos guardados dentro desse corpo-envoltório chamado cosmos. Está tudo aí, nesse céu, pensei enquanto desperto na minha primeira manhã nesse lugar, dentro da grande ‘guardação’, do grande acolhimento, dentro da grande casa.










A filosofia francesa de Derrida e Levinas nos apontou que somos ao mesmo tempo hóspedes e hospedeiros sem lugar neste mundo. A casa, com os atributos materiais e simbólicos que concedemos a ela, não passa de uma ilusão, um efeito de superfície. A filosofia serve-se da metáfora da casa, do lugar para explicar o ser, a casa como condição da própria existência, da condição humana. Aqui, é a natureza que acolhe a nossa existência e a casa é o corpo.

É sobre a arquitetura daqui que tenho pensando, a arquitetura natural do acolhimento e da hospitalidade. Uma hospitalidade que não se restringe ao espaço, mas que está primeiramente no indivíduo – como se ele portasse a hospitalidade no seu próprio espaço-corpo. O sentido da residência “estado de deriva em residência móvel” (e vice-versa) vai além do espaço ou da arquitetura: ele está nas próprias pessoas e nas suas possíveis ligações afetivas, no encontro com a natureza e na amorosidade que poderá ser construída a partir da temporalidade do próprio encontro e na disponibilidade para construções conjuntas.

O filósofo alemão Peter Sloterdijk, na trilogia Esferas (1998-2004), explora a ideia de morada, de acolhimento no espaço vivido e vivenciado. Em suas três partes – ‘bolhas’, ‘esferas’ e ‘espuma’ – Sloterdijk narra a história ocidental do macro e do micro-espaço da Ágora grega até o apartamento urbano contemporâneo. Em Espumas, o volume final, o filósofo alemão retoma a grande pergunta de Heidegger: onde estamos quando dizemos que estamos no mundo? É a partir do desenvolvimento dessa morfologia geral para o espaço humano através do conceito antropológico de esfera em analogia à Sloterdijk, que convido o grupo para nos reunirmos no espaço circular para as apresentações, introduções ao projeto, expectativas e intenções de realização de trabalhos durante a residência.






























Como ponto de partida da proposta curatorial, havia convidado cada um dos artistas participantes a apresentarem uma “carta de intenções” pré-deriva, a fim de estimular a construção de um imaginário sobre a paisagem, o isolamento geográfico e o compartilhamento temporal determinado entre pares como forma de gerar um “impulso-intuição” para as proposições artísticas in loco e os possíveis debates entre intencionalidade, processo e materialização de propostas.

Cabe registrar que não entendo esse estímulo de registro de intencionalidade como necessário para situações de residência e possíveis impulsos criativos pré-ação; porém, tenho interessado-me por discussões sobre intencionalidade artística na proposição de trabalhos de arte como ponto de partida a ser considerado para a posterior interpretação de trabalhos, pela curadoria. Nesse sentido pareceu-me uma boa ideia testar essa hipótese aqui. Entendo que os trabalhos de arte são como entidades entreabertas que, em certa medida, podem ser controladas pelo seu propositor (o artista), e em certa medida não. Investigar intenções pré-realização do trabalho e a inclusão das adversidades durante a sua execução é o interesse curatorial nesse contexto.

No encontro matinal discutimos sobre as intenções primárias manifestadas através de registros textuais ou orais de cada um dos artistas. A ausência de intenções manifestas em prol do enfrentamento direto com a lugar tem o intuito de não gerar expectativas (o que também entendo como uma intenção primária). Entre as diversas proposições artisticas intencionadas nesse encontro, citarei algumas, em fragmentos.

Evocar a memória da culinária da infância através de ingredientes locais em ações de compartilhamento noturno do ato de cozinhar é uma das proposições; estudos prévios da geografia local informam a presença nas redondezas de quilombos e a pesquisa prévia é fonte de inspiração para esse trabalho que tem uma direção bastante definida: a confecção de garrafadas para configurar em um corpo negro, uma africanidade corporal e efêmera em contraste (ou em afinidade) com a paisagem.

“É minha primeira residência, não estive antes espacialmente isolada e em uma temporalidade específica em convívio com estranhos” (nem eu, pensei) e um desafio é lançado pela artista em uma tentativa de apreender a anatomia humana na anatomia da natureza em projeções noturnas na copa das árvores da Chapada dos Veadeiros. A ideia é realizar um exercício mimético com liberdade para construir e desconstruir uma intenção artística, com abertura para o desconstrole. A artista finaliza sua fala assim, por hora: “estou em deriva”.

“Eu escolhi habitar a casa na árvore”, é uma ação de entrega à paisagem e aos elementos do entorno – a neblina, a pedra, a árvore. Assim como a casa na árvore, um estado de suspensão é configurado pelo artista nessa ocupação. Outro artista entende a deriva em um sentido deleuziano através do deslocamento do olhar, na deriva interna, na experiência do sublime e completa seu desafio para a residência: “desvelar as múltiplas camadas para imprimir uma rasura na paisagem”.

Despaisamento. Pensar o suporte da pintura. Escrever poesia.
Dia 04 – entre seguir trilhas existentes e abrir novos caminhos na natureza: uma experiência de errância compartilhada
As ações de errância em floresta são configuradas através de caminhadas seguindo trilhas já existentes ou através da abertura de novos caminhos na natureza? Um desafio é lançado por um dos artistas após consultar um dos moradores do local experiente em trilhas: para chegar ao paredão, em meio à chuva e ao terreno deslizante, é possível somente através da abertura de novos caminhos.

Aqui, novos caminhos são propostos para dar origem à novas passagens, novas paisagens. Qual a ação proposta? A retirada de barreiras vegetais, em um esforço coletivo.

Sair em errância.

“A minha forma de arte é a viagem feita a pé na paisagem... A única coisa que temos de tomar de uma paisagem são fotografias. A única coisa que temos que deixar nela é o rastro dos passos”. Hamish Fulton

“O caminhar condiciona a vista e a vista condiciona o caminhar a tal ponto que parece que apenas os pés podem ver”. Robert Smithson

Vamos pisotear o mundo! Ou como diria Richard Long, entender que a natureza produz muito mais efeito em nós do que nós nela.
Dia 05 – na repetição de um ato cotidiano, a culinária como prática artística. Ingrediente principal: afeto.
Sentar ao redor da mesa para compartilhar uma refeição: um ato noturno repetido ao longo da residência, a oferta generosa de amor em porções comestíveis é a ação realizada por um dos integrantes da residência. Cotidianamente, rotineiramente, no mesmo horário.

Uma crítica artística às formas dominantes do consumismo da comida: todos nos tornamos críticos da cultura do individualismo ao compartilharmos as refeições a nos organizarmos nas tarefas em torno delas. Nesse nosso período de maior acesso à variedade de alimentos, às tecnologias de conservação e de transporte, a operação proposta aqui é inversa: tomar consciência dos alimentos do entorno imediato para a construção de uma comensalidade colaborativa com aproveitamento máximo da comida disponível. Um gesto reflexivo, sem desperdício de alimentos, na ação de comer – uma das referências mais ancestrais da familiariedade humana que configura continuamente as relações que sustentam os coletivos.
Dia 06 - O limite vertical da chuva
Chuva: fenômeno meteorológico que resulta da precipitação das gotas líquidas ou sólidas da água das nuvens sobre a superfície da Terra. Simetricamente em frente a minha janela há uma área de chuva e uma área seca. Não havia visto ainda o limite da nuvem projetada na ação de chover e no seu rastro no chão. Esse é o último dia do encontro.
Hóspedes e hospedeiros de Nova Babibônia por 6 dias.
É hora de partir, preenchidos pela experiência vivencial e concreto de errância e nos registros que compartilhamos aqui.

Michelle Sommer